No livro Gol da Alemanha (Editora Grande Área, 2014), o espanhol Axel Torres e o alemão André Schön fazem um levantamento completo para entender os caminhos percorridos na reestruturação do futebol alemão. A ideia dos autores é mostrar quando e porque começaram e como foram feiras as mudanças que fizeram os germânicos deixarem para trás o pragmatismo do futebol força para se tornarem referências na produção de jovens talentos para abastecerem os clubes da Bundesliga e, por conseguinte, o Nationalef.
O Brasil sempre foi tido como o país do futebol, mesmo antes da conquista da primeira das cinco copas. O nome Seleção Brasileira era sinônimo de alegria e beleza na prática do esporte. É o que o falecido escritor uruguaio Eduardo Galeano classificava como poesia no seu excelente e indispensável Futebol ao Sol e à Sombra. A cada ciclo, jogadores de excelência surgiam e não era raro um jogador de 30 anos ser tratado como veterano, pois a reposição era rica e constante. Também não era incomum um jogador acima da média ser descartado pelos conjuntos que disputaram mundiais, como Ivair, Enéas, Neto (em 1990), Evair, Djalminha e Alex. A ideia de que seria possível formar três times competitivos simultaneamente não era nenhum disparate. Vou escusar-me de tratar do livro em si, pois quero mesmo é traçar um comparativo com o futebol brasileiro do pós-7 a 1 e quem quiser fazê-lo pode ler o livro. Antes, porém, destaco que, desde 1954, quando foram campeões pela primeira vez, os alemães não chegaram ao menos às semifinais dos mundiais em 1962, 1978, 1994 e 1998. Quando somaram dois mundiais seguidos caindo nas quartas-de-finais, o sinal vermelho foi ligado e a necessidade de mudança ficou clara, mesmo que, no ínterim entre as copas de 94 e 98, a Alemanha tenha sido campeã europeia em 1996.
Comparando com o mesmo período apontado acima, o Brasil não esteve entre os quatro melhores em 1954, 1966, 1982, 1986, 1990, 2006 e 2010. Ao contrário da Alemanha, porém, o futebol bonito, sobretudo o dos anos 1980, com Telê Santana no comando e jogadores como Zico, Júnior, Falcão, Cerezo, Éder, Sócrates, Luizinho e Careca a desfilar seu talento nos campos de todo o mundo, além da já citada reposição, serviam como credencial para seguir com o trabalho que era feito.
Por muitos anos, vendeu-se a ideia de que o Campeonato Brasileiro era o mais forte do mundo por ter, de saída, pelo menos três times em condições de serem campeões. Ledo engano. O Brasileirão é equilibrado, mas isso não significa necessariamente que seja bom. Não é. É nivelado por baixo, bem por baixo, e dá para contar nos dedos os jogos memoráveis das últimas edições. De bate-pronto, só me lembro do histórico Santos 4 x 5 Flamengo de 2011 e do 2 a 2 entre Atlético Mineiro e Flamengo no ano passado, mas mais pelos cinco minutos finais do que por tudo o que foi construído durante os outros oitenta e poucos minutos.
Pouco para quem a fama que tem (ou tinha) o ludopédio tupiniquim.
Se os alemães resolveram, segundo Torres e Schön, tocar a própria ferida e mudar tudo, como fizeram, o Brasil segue andando para a frente enquanto olha o retrovisor. Eles chegaram à conclusão de que, para se ter uma seleção forte, era preciso que os clubes formassem jogadores de boa qualidade técnica. Então todos os clubes se comprometeram a implementar o mesmo sistema de jogo desde a base até o profissional, com método, trabalho e tempo para os frutos serem colhidos. Por aqui, os clubes menores arrendam as categorias de base a empresários e, no primeiro sinal de talento, perdem um jogador que na verdade nunca foi seu, embora exista a obrigação de haver um registro na federação, o que, na prática, não representa nada.
Como os times pequenos, antigos fornecedores de talento para os grandes, agonizam, a saída encontrada foi, em vez de reestruturar o futebol daqui, buscar atletas em outros centros. Por pior que esteja, a economia brasileira ainda possibilita que os clubes contratem jogadores vindos de diversos países da América do Sul ou que repatrie nomes de peso que não encontrem lugares nos melhores mercados europeus. Nas décadas de 1970 e 1980, destaques de clubes dos países vizinhos eram trazidos para cá, ao passo que, hoje, é praticamente impossível haver um único emblema brasileiro sem jogadores estrangeiros, e são poucos os que agregam valor técnico aos campeonatos disputados.
Acha exagero meu? Apontem a última temporada europeia de destaque do meia Diego, hoje no Flamengo, antes de voltar para cá. Robinho, um dos melhores jogadores do último Brasileirão quando vestiu a camisa do Atlético Mineiro, estava apagado no pior Milan dos últimos anos. Elias, que chegou à Seleção Brasileira quando brilhou no Corinthians, não conseguiu se firmar no Atlético de Madrid e no Sporting, este disputando uma liga de segundo ou terceiro escalão no Velho Continente, a Portuguesa. E nenhum deles veio ganhando pouco.

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Micale, ex-técnico da seleção brasileira sub-20. Foto: Lucas Figueiredo/Mowa Press.

O exemplo mais recente de que o 7 a 1 não serviu para absolutamente nada foi a demissão de Rogério Micale da Seleção Sub-20, que conseguiu não se classificar para o mundial da categoria ao terminar em quinto lugar o hexagonal final do Sul-Americano do Equador, que reservou quatro vagas, sendo que uma delas ficou com a Venezuela. Micale assumiu o comando no lugar de Alexandre Gallo, demitido após o fraco desempenho mostrado na competição continental de 2015, mas que se classificou com a última vaga. Faltavam 20 dias para a estreia no Mundial e, ainda assim o Brasil apresentou um futebol vistoso, embora tenha perdido a final para a Sérvia.
Era um respiro de bom futebol no pós-7 a 1.
Como Dunga caiu e Tite não quis ser o treinador na Olimpíada, como queria a perdida direção da CBF, foi com Rogério Micale que o Brasil, que começou claudicante, conquistou a medalha de ouro. Vale salientar que, na competição, o único dos candidatos ao pódio que não teve problemas com liberação de jogadores foi o Brasil. Tatá Martino demitiu-se da Argentina por não ter apoio da AFA para montar a equipe que viria ao Brasil; Rui Jorge, selecionador português, teve que convocar 52 jogadores para conseguir ter 17 nomes – seriam 18, mas um foi cortado 40 minutos antes da divulgação da lista pela não liberação do seu clube -, sendo somente 11 dos quais os que seriam convocados caso não houvessem problemas com as suas liberações. A Alemanha, que terminou com a prata e dominou boa parte da decisão, veio com uma equipe alternativa também.
E, convenhamos, o futebol olímpico não passa de um campeonato sub-23 banhado a ouro e que não conta, por razões políticas e de marketing, com a chancela da FIFA. É este o título que o Brasil conquistou.
Poderíamos alegar que o cenário não é o mais catastrófico e desalentador possível, pois mesmo com a goleada sofrida no malfadado Mineiraço do dia 8 de julho de 2014, a Seleção chegou às semifinais de uma Copa do Mundo, o que não aconteceu com o grupo recheado de craques de 2006 e com o bom time de 2010, mas o futebol apresentado nos gramados brasileiros foi o mais questionável possível: venceu a Croácia com a ajuda da arbitragem; empatou com o México tendo passado sustos na defesa; goleou Camarões por 4 a 1, é verdade, mas os africanos estavam desfalcados dos dois principais jogadores (Song e Eto’o) e já estavam eliminados, e ainda criaram problemas quando chegaram ao gol de empate.
Nas oitavas, dominou com propriedade durante 32 minutos, que foi quando o Chile igualou o marcador e o time brasileiro ruiu emocionalmente, com direito a choro e recusa a bater um dos pênaltis por parte do capitão, Thiago Silva, e quase caiu no fim da prorrogação, quando Pinilla acertou o travessão de Julio César. A melhor apresentação brasileira foi nas quartas-de-final, quando jogou com o coração e venceu a excelente e superior Colômbia. A partir daí todo o desequilíbrio técnico, tático e emocional da equipe foi canalizado e flagrante na vexatória derrota para a Alemanha. O 3 a 0 para a Holanda, na disputa do terceiro lugar, foi apenas o impacto de um time completamente desmoralizado e que não priorizou os treinamentos durante a competição.
Micale caiu porque não classificou a Seleção ao Mundial da Coreia do Sul, mesmo não tendo à disposição um grupo de jogadores qualificado. E não o tinha porque simplesmente não há um método de trabalho nos clubes que possa garantir a geração de talentos em grande escala. Os times de base nos grandes clubes são montados com o intuito de: a) vencer campeonatos; b) vender jogadores; c) distribuir cargos de acordo com a conveniência política. Isso sem contar que, quando não são vendidos, os jovens mais talentoso queimam etapas e chegam crus ao time de cima. São mimados e tratados como joias quando não passam de jogadores de potencial, mas que precisam ser lapidados ainda.
Voltando ao cenário de 2014, a coletiva seguinte à humilhante e histórica derrota – quando Parreira e Felipão não admitiram em momento algum o trabalho mequetrefe e obsoleto, com um esquema de jogo manjado e um homem de área parado entre os zagueiros (coisa que nenhuma outra seleção de ponta mantinha), e que teve como ápice a leitura de uma tal Dona Lúcia, imediatamente inserida no folclore futebolístico nacional e lida pelo coordenador técnico Carlos Alberto Parreira, o mesmo que declarou que a CBF era “o Brasil que deu certo” e que a seleção brasileira “estava com uma mão na taça” antes do início da Copa – poderia ser vista à época como uma resposta de quem ainda estava, absorto, sob efeito de uma espécie de sedativo moral.
Não era.
Para a Alemanha, o 7 a 1 foi o resultado da transformação de quem percebeu que estava parado no tempo, admitiu suas limitações e explorou o melhor dos melhores nomes que tinha à disposição; para o Brasil, não foi nada mais que um apagão de oito minutos.

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