Marinho Rato era o típico meia clássico do futebol brasileiro no final dos anos 1960. Número 8 às costas, cabeça e pé pensante do time, Marinho tinha recebido a alcunha do roedor por ser franzino e rápido. Ele era meia direita e principal jogador do Operário.
Era semana de decisão do campeonato distrital e o Operário iria enfrentar o poderoso Ordem e Progresso, time da mesma cidade, que tinha como um dos torcedores mais fanáticos o delegado Paranhos.  Doutor Paranhos, como fazia questão de ser chamado o policial linha-dura, só pensava na partida e no prestígio que o título lhe traria, uma vez que era um dos patronos do time, com quem fazia questão de aparecer no flanco das fotos. “Sempre à direita!”, dizia.
Mas uma coisa lhe tirava o sono: a fase exuberante de Marinho Rato. O meia do Operário era o grande daquele campeonato e fazia o diabo com a perna direita e Paranhos precisava de um jeito de tirar o craque do certame. Só não sabia como. “Se ao menos esse desgraçado estivesse envolvido com algum bando de subversivos…”, pensava, enquanto enrolava o bigode e batia a caneta na mesa de mogno da delegacia. Marinho, no entanto, nem politizado era e só pensava em jogar bem aqueles jogos finais para, com uma boa dose de sorte, algum olheiro o levar para uma equipe qualquer da capital.
A fama de Marinho era tanta naquelas plagas que o Operário, preocupado com alguma possível interferência externa na decisão, resolveu presentear as autoridades da cidade com camisas autografadas pelo seu astro. Como era avesso a badalações, a pouca paciência dele fez com que assinasse com um singelo “MR-8”.
Eram tempos de ebulição política no país, mergulhado nos Atos Institucionais, que suspenderam os direitos civis da população, em nome da chamada “segurança nacional”. Naquela mesma semana, dois grupos que caíram na clandestinidade com o advento do AI-5 sequestraram o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick: a ALN (Aliança Libertadora Nacional) e o Movimento Revolucionário Oito de Outubro, o MR-8.
O primeiro jogo da decisão foi disputado no campo do Ordem e Progresso, que entrou com força máxima. O Operário, surpresa do campeonato, também estava sem desfalques. O time da casa saiu na frente no primeiro tempo com o gol do centroavante Meia-Noite e praticamente mandou no jogo, mas os visitantes empatarem no fim, com um golaço de falta de Marinho Rato, daqueles de enciclopédia: bola a cinco ou seis metros da linha frontal da grande área, batida cm capricho, por cima da barreira, no ângulo esquerdo do goleiro Zeca Vinte e Dois, que recebeu o apelido por ter seis dedos em cada mão, que, somados aos dez dos pés, davam os 22 do apelido sacana. Pela melhor campanha, ao Operário bastava dois empates para ser campeão, e o primeiro jogo acabou com o resultado justo.
Ao final da porfia, os dirigentes do Operário ofertaram as camisas às autoridades, como planejaram, e uma delas, obviamente, chegou às mãos do delegado Paranhos, que puxava os poucos cabelos que ainda restavam e matutava em como descobrir uma forma de Marinho Rato não jogar.
Ele não ficou muito feliz com o presente. Ora, uma camisa com o nome do maior dos obstáculos que tinha para sua promoção pessoal era a última coisa que gostaria de receber naquele dia, mas antes de jogá-la num canto qualquer da sua sala na delegacia, reparou no autógrafo. Foi o que bastou.
No dia seguinte, uma diligência esperava o camisa oito no final ao treino, a fim levá-lo à delegacia para que prestasse esclarecimentos sobre seu suposto envolvimento com a organização. Marinho, evidentemente, não fazia ideia do que estava acontecendo, tampouco por que apanhava para confessar algo que sequer conhecia.
“Cadeira do Dragão” era o nome de um instrumento de tortura muito usado nos aparelhos de inquisição do regime militar no Brasil dos anos 1960 e 1970. Consistia numa pesada cadeira com assento de metal ligado a um terminal elétrico. A cadeira também era dotada de uma travessa de madeira que empurrava as pernas para trás, e a cada espasmo provocado pelas descargas elétricas, as pernas batiam na travessa, o que causava ferimentos sérios.
Marinho passou aquela tarde inteira sentado na Cadeira do Dragão. Quando a sessão de torturas chegou a um ponto em que ele sequer conseguia gritar de dor, o delegado foi consultado para saber se deveriam prosseguir. Paranhos, embora fosse simpático ao regime, queria apenas tirar Marinho Rato do jogo. Então se certificou de que o jogador estava impossibilitado para a partida, mas sem maiores consequências. Afinal de contas, o que lhe interessava era o título, apenas isso.
Paranhos era só alegria. “Esse coitado nem deve saber o que é o MR-8, mas fazer o quê?”, pensava a cada vez que olhava o autógrafo na camisa. Com as pernas em frangalhos e sem participar dos treinamentos durante a semana, Marinho já era carta fora do baralho para a decisão com o Ordem e Progresso. No entanto, o pessoal do Operário conhecia um Pai de Santo dos bons, que, se não o deixou na ponta dos cascos, ao menos o colocou em condições de ficar no banco de reservas.
Para isso, Rato teve que passar uma noite deitado no sereno, completamente nu, e passar uma espécie de unguento feito de nas pernas, enquanto dizia a seguinte frase: “Pra salvar os cambito, passo baba de cabrito”.
Como desgraça pouca é bobagem, ele teve febre naquela noite. “Porra! Já não bastasse a perna, agora essa merda dessa gripe? Aquele Pai de Santo do caralho só me tirou dinheiro”. Só que, de tanto suar, tudo o que estava de ruim no corpo dele saiu e, pela manhã, já estava melhor, embora ainda sentisse dores muito fortes nas pernas.
Quando chegou ao estádio municipal, Paranhos foi ao vestiário e pagou o bicho do título adiantado. “Confio em vocês, rapazes. Vamos para a foto do título. Eu, claro, fico sempre à direita!” E ria. Riu até o momento em que viu Marinho Rato entrando indo para o gramado. “Eu vi esse filho de uma égua apanhando e ele vai para o jogo? Ah, ainda está mancando e vai para o banco. O palhaço não tem a menor condição de jogar. Menos mal”.
Marinho, no banco, assistiu ao Ordem e Progresso abrir o marcador e dominar o primeiro tempo completamente. No intervalo, no vestiário, ele tomou a palavra e, olhando nos olhos de seus companheiros, disse com firmeza: “Eu tô com a perna toda fodida, mas se precisar eu entro nessa porra! A gente trabalhou pra cacete pra chegar até aqui e vocês vão deixar os caras tocarem a bola enquanto vocês só olham? Vamos ganhar essa porra!”
O segundo tempo começou como o primeiro, mas aos poucos o Operário passou a deter a bola por mais tempo. Quando faltavam 15 minutos, Marinho Rato foi para o jogo. Ainda mancava um pouco, mas conseguia participar da partida. “Uma bola. Preciso de uma bola”, ele pensava. E essa bola veio quando faltavam oito minutos para o final. O lateral Esquerdinha virou o jogo para Catatau, um ponteiro direito baixinho e rápido, um pouco mais alto que a própria bola, que avançou como um raio e cruzou para a entrada da área, onde estava Marinho Rato.
No estádio lotado, os pulmões estavam petrificados, paralisados. Ninguém respirava. Todos pares de olhos acompanhavam a viagem do esférico, desde o pé de Catatau até chegar ao diabólico camisa 8.
Naquele instante o tempo parou. Rato viu a bola se aproximando e, enquanto arrumava o corpo para o arremate, lembrou da sessão de tortura. “Confessa, vagabundo!” “Não sei de nada, senhor”. E o choque. E a pancada na madeira da Cadeira do Dragão. “Confessa, comunista! Cadê o Marighella?” “Não conheço ninguém com esse nome. Eu juro”. E mais choque.
Como a perna direita doía, Marinho pegou de sem-pulo, com o peito do pé esquerdo. Um pombo sem asa que Zeca sequer viu por onde passou. Só ouviu o roçar da bola na rede e o estrondo vindo das arquibancadas.
Que ironia para Paranhos. Viu o título escapar com um chute do MR-8, de esquerda, depois de um passe vindo justamente da direita.
Naquele dia, nenhum olheiro foi ver o jogo.

Comentários

comentário