15 de abril de 1989. Há exatos 28 anos, pela semifinal da FA Cup, Liverpoool e Nottingham Forest se enfrentariam no estádio Hillsborough, em Sheffield. Como era de se esperar, casa cheia, e, como é habitual na Inglaterra, a divisão do estádio foi feita com as torcidas uma de cada lado. O erro começou quando a torcida do Nottingham, mesmo em menor número, foi selecionada para ficarem com a maior parte do estádio, com 21 mil lugares. Os torcedores do Liverpool ficaram no outro “end”, com capacidade para 14 mil e seiscentos torcedores. Entre 2:30 da tarde e 2:40 da tarde, com a partida prevista para começar às 3, houve um considerável acúmulo de fãs na pequena área fora das entradas, todos ansiosos para entrar no estádio rapidamente antes do jogo começar.

Com a falta de organização da polícia em dividir quem tinha ingresso ou não, havia uma multidão na porta do estádio dez minutos antes do jogo começar, e lugares vazios dentro de Hillsborough. A passagem de quem tinha ingresso era dificultada por aqueles esperançosos em ainda conseguir sua passagem para o grande jogo. Dez minutos antes do jogo, ainda haviam aproximadamente 5 mil torcedores com ingresso do lado de fora, ávidos para adentrar o local da partida. Um portão lateral foi aberto para ajudar na vazão de pessoas, mas rapidamente ficou lotado. Com a preocupação de não haver pessoas esmagadas do lado de fora, outro portão, esse que seria só de saída, foi aberto para a entrada dos fãs do Liverpool. Desta vez, sem catracas. Milhares de torcedores, com e sem ingresso foram adentrando na parte da frente do estádio, superlotando o local. O resultado foi um fluxo de milhares de torcedores através de um túnel estreito na parte traseira do campo, e para as já superlotadas duas divisões centrais, causando uma queda enorme na frente do campo, onde as pessoas estavam sendo pressionadas contra as grades pelo peso da multidão atrás deles. As pessoas que entravam não estavam cientes dos problemas em cima do muro; polícia ou comissários de bordo teriam normalmente ficado na entrada do túnel se as divisões centrais tivessem alcançado a capacidade, e teriam dirigido os torcedores para as divisões ao lado. Desta vez eles não o fizeram, por razões que nunca foram totalmente explicadas. O jogo durou três minutos. Já os momentos de horror em campo, nunca serão esquecidos.

96 fãs do Liverpool morreram na tragédia. Homens, mulheres, crianças. Esmagados, pisoteados, sufocados. O gramado de Hilsborough virou hospital improvisado, com cenas profundamente tristes.

Após o desastre, um inquérito foi instaurado para indicar as causas da tragédia. Assim, foi feito o Relatório Taylor, diretamente influenciado pela ex-primeira-ministra, a “dama de ferro” Margaret Thatcher. Nele, os fãs do Liverpool foram apontados como os únicos culpados pelas mortes, graças aos abusos no álcool e na violência. O jornal sensacionalista “The Sun”, baseado no Relatório, divulgou uma edição especial sobre “A Verdade”, apontando que torcedores do Liverpool roubaram as vítimas e urinaram nas costas de policiais que tentavam ajudar, entre outros absurdos. Além disso, o documento mudou radicalmente a segurança nos estádios britânicos, focando em erradicar a prática do hooliganismo, além de ser o principal responsável pela elitização do futebol inglês a partir de então, com a obrigação de haver cadeiras em todos os setores dos estádios.

Capa do jornal “The SUn”, em 1989. “A Verdade” seria que torcedores do Liverpool estavam embriagados e urinaram em policiais que socorriam as vítimas.

O Relatório  e o jornal foram duramente criticados pela comunidade de Liverpool, que protestou e se recusou a aceitar que seus próprios torcedores tinham causado aquilo. O “The Sun”, inclusive, não circula mais em diversas áreas da cidade, desde então. A luta dos reds não parou, fazendo homenagens aos 96 mortos e o pedido de “justiça pelos 96” sempre presentes em suas partidas. A cada derrota nos tribunais, que continuavam a persistir que a tragédia havia sido um acidente causado pelos fãs, mais dor e desesperança para as famílias que perderam seus entes queridos. Em 2009, no aniversário de 20 anos da tragédia, pela primeira vez um membro do governo foi liberado para falar sobre o assunto, em um memorial organizado pelo Liverpool no estádio Anfield Road. Andy Burnham, Secretário de Estado Britânico de Cultura, Mídia e Esporte foi ao microfone e falava do quão dolorosa foi a perda dos 96 torcedores. Então, em uma breve pausa no discurso após citar as condolências do primeiro-ministro, algum torcedor do Liverpool gritou “justice!”. Foi o suficiente para desencadear um canto que já estava entalado na garganta de quem sabia a verdade, a plenos pulmões. “Justice for the 96!” foi entoado com mais força do que nunca, em um momento de arrepiar. Um grito de socorro daqueles que buscavam por justiça há 20 anos.

Veja aqui o emocionante momento:

Burnham, emocionado e acenando com a cabeça, terminou seu discurso e prometeu não medir esforços para descobrir a verdade sobre Hillsborough. E não foi “promessa de político”. Após três anos de profundas investigações, outro relatório, desta vez feito por um painel independente montado por Andy Burnham e mais sete investigadores e confirmado pelo jornal “Daily Telegraph”, divulgou que 116 dos 164 relatórios de agentes contando o que havia acontecido na tragédia foram alterados para remover o que seriam “comentários desfavoráveis à investigação” e que nunca houve provas de que os adeptos do Liverpool estariam sob a influência de bebidas alcoólicas. Em 2015, David Duckenfield, chefe de segurança em Hillsborough, assumiu ser o principal responsável pelas mortes, após autorizar a abertura dos portões. Pedidos de desculpas foram feitos por jornais que tomaram o Relatório Taylor como verdade – inclusive o “The Sun” – e até por David Cameron, então primeiro-ministro.

Mas apenas no ano passado, no dia 26 de abril, a justiça britânica confirmou em um júri o que todos já sabiam e pediam pelo reconhecimento: a culpa da tragédia não foi dos torcedores, e sim da desorganização da polícia presente no estádio. Finalmente os torcedores sobreviventes puderam ser reconhecidos como heróis que tentaram ajudar, e não como responsáveis pela morte de seus amigos queridos. Finalmente os 96 que perderam suas vidas descansaram em paz. Finalmente, o pesadelo acabou.

O Liverpool, que nunca mais jogou no dia 15 de abril desde então e que possui um memorial para os 96 mortos na tragédia no estádio de Anfield, comemorou a decisão nas redes sociais, naquela que foi uma das maiores provas de resiliência e busca por justiça da história da Inglaterra. Amanhã, os reds encaram o West Brom, fora de casa, no primeiro aniversário em que a tragédia conta com uma resolução justa. Com certeza veremos muitas homenagens e momentos bonitos no “stand” da torcida do Liverpool. Agora em paz. Finalmente, após 28 anos, podemos dizer no aniversário da tragédia de Hillsborough:  “justice for the 96” foi feita.

 

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