De acordo com o Dicionário Aurélio, epopeia é um poema extenso que narra as ações, os feitos memoráveis de um herói histórico ou lendário que representa uma coletividade; poema épico, poema heroico, ou ainda, uma sucessão de eventos extraordinários, ações gloriosas, retumbantes, capazes de provocar a admiração, a surpresa, a maravilha, a grandiosidade da epopeia. Todas as definições e conceitos ficam pequenos após a noite de ontem em Quito, Equador.

O Atlético Tucumán, um pequeno time do interior da Argentina (San Miguel de Tucumán, 1200 km da capital), jogava sua primeira partida oficial da sua história fora de fronteiras hermanas. Após o empate em 2 a 2 em casa, precisava vencer o El Nacional de Quito, na casa do adversário, a 2850 metros por cima do nível do mar. O que já era naturalmente complicado acabou em drama com final feliz.

Quando Luis de Camões escreveu Os Lusíadas, uma das maiores epopeias escritas em português, talvez imaginasse que nenhuma viagem poderia ser mais perigosa e emocionante. Os bravos navegadores portugueses precisariam contornar o Cabo da Boa Esperança para chegar às tão sonhadas Índias. Mas se os perigos do oceano não passam nem perto daqueles causados por diretores incompetentes e companhias de fretamento aéreo pavorosas que se dispõem a fazer um vôo sem checar a documentação necessária. O resultado? Avião barrado em Guayaquil faltando menos de 4 horas para o começo do jogo.

E se uma epopeia precisa de feitos extraordinários, nem mesmo Julio Verne na sua Volta ao Mundo em 80 Dias conseguiria escrever um livro com tantas emoções. O avião fretado jamais decolou. O tempo para o começo do jogo diminuía. Faltando menos de 2 horas para o apito inicial, os argentinos decidem por um vôo comercial, e partem rumo a Quito sem ter certeza da realização do jogo (a regra indica que o atraso máximo permitido é de 45 minutos após o horário marcado). Sem poder despachar todas as bagagens, o material de jogo fica para trás. Em vez do apito inicial, o comandante mandava afivelar o cinto de segurança para o pouso. O vôo de 50 minutos não foi mais emocionante do que o trajeto de ônibus até o Estádio Olímpico de Quito. Foram mais 45 minutos, desafiando todas as regras de trânsito (e do bom senso), até chegar à arena de batalha.

A surpresa da epopeia estava nos trajes das personagens. Eram as mesmas cores do time, porém, com um pequeno detalhe: tratava-se do uniforme (e das chuteiras) dos jogadores da seleção Sub 20 da Argentina que disputam a fase final do Sul Americano. E se numa epopeia se narram as aventuras de um heroi que representa uma comunidade, ontem o Atlético Tucumán foi literalmente o país na Copa Libertadores. O berço da independência argentina (foi em Tucumán a cidade em que se redigiu a Proclamação da Independência da Argentina) vestiu as cores da nação e foi para a batalha.

A Ilíada e a Odisseia inauguraram o gênero épico narrando as aventuras da Guerra de Troia. Gregos e Troianos se digladiaram entre os séculos XIV e XII a.C nas terras da Península Balcânica. Troia parecia intransponível. Mas os gregos, com uma estratégia inédita, invadiram a cidade inimiga e derrotaram seus adversários. Nenhum dos deuses do Olimpo teria acreditado se falassem que o pequeno time do interior da Argentina, após a tumultuada viagem, entraria em campo e dominaria o jogo enquanto o físico permitiu. Os bravos guerreiros tucumanos, reféns de uma diretoria irresponsável que quase os eliminou da competição por um bizarro erro logístico, entraram em campo praticamente sem aquecimento (a não ser que se considerem a saída do avião, subida e descida do ônibus como tal, já que foram feitas em velocidade de final olímpica de 100 metros rasos). Resistiram a um começo de jogo em que tinham tudo para cair, foram se entendendo com a velocidade da bola (muito maior na altitude do que no nível do mar), emparelharam as ações e foram tomando conta do jogo. Lentamente, as melhores chances eram criadas pela equipe visitante. Os soldados argentinos, como se estivessem saindo do cavalo de troia, foram invadindo o território equatoriano, criando e perdendo chances de gol, até que Fernando Zampedri marcou o chorado gol da classificação, aos 19 minutos do 2º tempo. E quando as energias argentinas acabaram, os zagueiros se multiplicavam, os volantes preenchiam espaços, os atacantes voltavam para marcar e tirar a bola para onde apontasse o nariz. Enquanto isso, o time do Equador não achava forças nem futebol para furar uma defesa formada por 99% de coração e 1% de tática.

Quando o árbitro uruguaio Andrés Cunha apitou o fim do jogo, os jogadores tucumanos se abraçavam, choravam de emoção, junto com os milhares de torcedores que enfrentaram uma longa viagem para participar desta aventura épica. Se a função da epopeia é gerar admiração, surpresa e maravilha, com certeza o jogo de ontem merece as páginas de um livro.

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