Era menino que aprendia geografia na escola, que sofria com matemática e adorava confabular sobre a língua portuguesa. Era renovadora a sensação de conhecer. Ter exemplos era a base fundamental desse processo. A mão estendida que dizia em voz suave e aveludada: “vem, vem cá, eu te ensino”. Um convite tão sedutor. Um desejo irresistível. Era paixão. A mão que afaga é a mesma que apedreja, disse o professor de Literatura, enquanto lia “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos. Foi em uma mesma sexta-feira em que, mais tarde, via pela televisão um jogo interessante, pareciam dois inabaláveis rapazes guerreando por um troféu. Era 2007. Era Roger Federer e Rafael Nadal. Eram viris como sãos os jovens. Já gênios, como só eles já eram, mas eu só notaria muitos anos mais tarde. Coisa de garoto.

Final de semana refletindo sobre aquele oásis de brilho que havia acontecido no dia anterior. Lia as lições dos professores, via como era engrandecedor saber pouco por quem sabe o mundo. Queria saber ao menos um porque da arte de jogar. Aulas de tênis, porque não? Havia mais de mim ao lado, mais paixão adolescente a ser lapidada. Havia um mestre disposto da dar Federer e Nadal aos jovens. A mão que afaga. Apedrejado não foi Federer, que perdeu aquela batalha que fez os olhos brilharem. Celebrado foi o rival, mais que natural. Nadal. Era brilhante e aconchegante como as derrotas criavam discursos de ode, sem lamúria. A dor de derrotado, mas o impulso de valorizar o sofrimento. Parece vestibular dos treineiros. Passou? Ótimo. Não? Parabéns por tudo.

Um vestibular em que os participantes são de algum lugar longe daqui. Lugar de poucos. Queria aquilo tudo. Pedra sobre pedra, aprende-se o básico e descobre-se que, como na escola, existem pontos inalcançáveis onde só os Deuses habitam. Aquele japonês genial. Aqueles caras. O tempo, implacável como todos os forehands de Roger foram, foi tomando seu rumo. Fez esse desenhista de letras e aspirante a tenista socialmente ruim envelhecer e ver seu maior ídolo vencer 18 grand slams. Ver jogos homéricos, derrotas gigantes para Rafa. Vitórias memoráveis. Viu a carreira acontecer, a história ser escrito debaixo dos óculos.

Hoje, lembrando com carinho do que os mestres ensinaram, percebe que só descobriu a paixão pelo esporte que há alguém que esticou a mão do afago. Mas a dor da pedra foi pensar que a história caminhava para o fim, como os últimos cinco minutos da aula preferida, do professor querido. Do motivo para querer mais e ser maior. Professores são privilégios. Alunos são abençoados. Inspirador, Roger Federer. Deus da garra, Rafael Nadal. Meu professor e seu principal concorrente. Referências. O fim talvez tenha chegado, afinal, todos cremos nisso, estendemos a mão e demos graças por tudo. Como nos créditos dos grandes filmes, ficamos esperando a cena que vem depois, talvez a mais linda. A mais relevante. A que fica escondidinha, desacreditada, mas muito bem cuidada. A nota dez que chega no último bimestre de Matemática. É de emocionar muito. Pior que o abraço de despedida que todos demos ou daremos no dia de formatura. As lágrimas saem com a naturalidade de amar. É espetacular. Roger e Rafa voltaram diante das dores da vida, dos problemas, dos anos de distância daquela linda final que deu início a esta pequena homenagem. Muitos anos se foram, o 35º encontro chegou. Rafa superou as descrenças da medicina, disse: “não posso? Logo eu, o mais raçudo jogador de tênis que o circuito já viu”. Roger viu-se as voltas com a idade, o mais implacável rival. A proximidade da aposentadoria, mas viu sua esposa dizer: “parar? Logo você? O maior jogador de tênis que o planeta terra já viu? Não. Não agora”.

Foi muito tocante ouvir o poema de Augusto dos Anjos quando a adolescência me convivia. Hoje, foi arrepiante lembrar de tudo podendo voltar no tempo, sentir que o mundo pode reservar momentos anacrônicos em que tempo e espaço estendem o tapete vermelho da imortalidade e fazem sala para espetáculos que valem uma vida. Momentos que mostram que é excelente viver o carpe diem, mas que é genuinamente delicioso viver as grandes lembranças. Os heróis. O passado e o futuro dão sim as mãos para caminharem ao inesquecível. Ao final da interpretação daquele poema, levantamos todos e aplaudimos em reverência. Hoje, foi como se levantássemos ainda antes de começar. Contemplamos cada minuto. Era lindo. Lindo mesmo. Parecia um tango levado pelas palmas. Cada ponto, uma alegria de paixão, um lamento de dor. Preferências todos têm, mas heróis são imunes. São além. São pulos de êxtase ao ver que a direita foi sobre a linha. Que Roger fez o milagre da imortalidade ser vida. Que fez Rafa ser o mais brilhante derrotado. Uma lenda. Essa história é real, mas poderia muito bem ser a “lenda do impossível”. É tarefa ingrata escrever sobre amor e sobre Deus. Escreve sobre tênis, o mais belo dos esportes é pior. Escrever sobre Roger Federer, campeão do Australian Open 2017, é isso. É o que foi possível. Ao rei, a coroa. Sinal bateu, pessoal. Bom descanso.

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